O verdadeiro mundo das Gueixas.

18-12-2010 18:12

  A The price of beauty desvenda os segredos das guardiãs da cultura tradicional japonesa e traz entrevista exclusiva com uma delas

O mundo das gueixas é um dos mais comentados e curiosamente, um dos menos conhecidos do mundo. Por toda parte já se ouviu falar sobre o assunto. Mas ninguém sabe exatamente o que fazem essas mulheres. Lindas e anônimas, com rosto coberto pela espessa maquiagem branca, elas estão entre os símbolos mais marcantes do Japão. De reputação duvidosa, muitos ainda teimam em classificá-las como garotas de programa. Enigmáticas, são donas de um estilo de vida que já inspirou livros. O mais badalado deles, Memórias de uma Gueixa, do escritor americano Arthur Golden, e virou filme pelas mãos de ninguém menos que Steven Spielberg. Toda a fama desse universo se deve exatamente ao fato das gueixas serem inacessíveis para a maioria dos mortais. É um universo tão exclusivo que a maior parte dos japoneses nunca teve nem terá a oportunidade de conferir de perto. O privilégio é exclusivo de ricos empresários, políticos poderosos e renomados artistas. E só. Ninguém mais entra nesse restrito clube. Nem mesmo o dinheiro pode comprar o acesso. Se não a apresentação de alguém que já faça parte deste mundo, é impossível chegar até ele. Depois de vários meses de contatos, Made in Japan conseguiu permissão para entrevistar essas divindades do Japão. E, pela primeira vez na imprensa brasileira, desvenda o que acontece dentro das exclusivas casas de chá japonesas.

 

Uma noite pode sair por até 5 mil dólares

 

O universo das gueixas, mulheres-artistas que se dedicam a agradar aos homens por meio da dança, da música e da pura adulação é um território a parte do Japão. É um mundo de sonhos, permeado de romance, luxo e exclusividade. Para conhecer seus mistérios, poucos são os selecionados. Para manter o fascínio da arte, raras são as escolhidas.

Ser gueixa não é uma simples opção. Para se tornar mestras de entretenimento masculino, as maikos (aprendizes) precisam muito mais do que dotes artísticos e um rosto sem espinhas. Afinal, elas são treinadas para amansar os egos dos homens mais poderosos do Japão, sejam eles políticos graduados, abastados empresários ou temidos yakuzas (mafiosos). Todos milionários que não se importam em torrar fortunas, para serem inebriados sem suas próprias fantasias. Por outro lado, dinheiro não é passaporte garantido para o aparentemente inacessível universo das gueixas. O que significa que uma conta bancária polpuda não basta para ser bem-vindo nas luxuosas casas de chá em que as gueixas entretêm seus clientes em Kyoto, Tokyo e e outras poucas cidades japonesas. A chave de entrada é ser amigo de alguém com trânsito livre nessa sociedade privada. “E um universo de apresentações”, explica Michiyo Oishi, dona da casa de chá Hori Yae, em Miyagawacho, um dos cinco distritos de gueixas de Kyoto – onde a tradição surgiu no século XVII. “Até um estrangeiro pode entrar, desde que seja apresentado por um de nossos clientes”.

 

 

Cenas do cotidiano em Miyagawacho, badalado bairro de gueixas em Kyoto

Para chegar ao estágio de geiko (gueixa), as aprendizes acumulam anos preparação. São adolescentes que trocam a rotineira vida de família e escola para viver a paixão pela arte. “Quando tinha 15 anos, vi numa revista feminina uma reportagem sobre Kyoto, fiquei encantada com as gueixas e decidi que aquela seria a minha vida”, revela a maiko Fukuyuki, hoje com 18 anos e há três anos morando em Miyagawacho.

A vida de maikos com Fukuyuki está longe de ser rotineira, mas não deixa de ser espartana. Como já acompanham as gueixas nas festas de casas de chá (ocha-ya), têm a oportunidade, ainda muito jovens, de conhecer alguns dos homens mais influentes da política, das artes e dos negócios do Japão e do mundo. Para não decepcionar os anfitriões, aprendem desde cedo a dominar não só as peculiaridades do serviço a que se propõem, mas as próprias emoções. “É uma profissão atraente porque aqui fico ombro a ombro com pessoas importantíssimas”, exulta-se a maiko.

 

A noite embadalada pelo hipnotizante balé as conversas bem-humoradas para entreter os clientes

 

O serviço proporcionado pelas gueixas, ainda que perfeito, é muito simples se equiparado à pompa e ao mistério que envolve sua rotina. Elas são encarregadas de servir as bebidas e descontrair os clientes durante as festa. Encaminham as conversas para tema amenos, contando piadas e fazendo os homens se sentirem donos de um reino cujos limites são o tatami e as paredes. Carismáticas e sedutoras, elas sabem com trazer os clientes para seu mundo de fantasia. E um dos segredos é nunca contrariá-los.

Questões “fúteis” como dinheiro, por exemplo, jamais são abordadas durante as estadas no ocha-ya. Assim, um cliente jamais avistará uma conta em mesa após qualquer festa. A fatura lhe será enviada pelo corrreio uma semana seguinte. Um truque que faz os homens apagarem da memória qualquer tipo de preocupação enquanto apreciam o show das geikos – mesmo que soe estranho alguém com cacife para bancar uma festa de gueixas se enquadra no rol das pessoas com “problemas”, pelo menos financeiro. Dependendo do número de gueixas em uma festa (a média é uma para cada dois clientes) e do montante de uísque e saquê consumidos, o banquete no ocha-ya custa entre 2 mil e 5 mil doláres por cabeça. O valor é pago por um determinado anfitrião, que pode ser um ator de kabuki agradando amigos ou empresários bajulando pessoas que lhe interessem nos negócios.

 

 

 De volta ao dia-a-dia de tarefas domésticas e estudos no oki-ya

 

Até tarefas simples, como servir saquê, são executadas pelas gueixas com movimentos encantadores. Atitudes derivadas de um exaustivo treinamento que inclui também o aprendizado das regras de etiqueta da cerimômia do chá, o requintado ritual japonês para se tornar chá verde. A música é outra especialidade das moças, que sabem tocar pelo menos um ou dois instrumentos característicos da música de gueixas, chamada de kouta.

Muitas se arriscam ainda a cantar. Para conseguir atuar em tantas artes diferentes, contam coma experiência de mestres como Inoue Yachiyo, 92 anos, que ainda ensina dança para as gueixas em Kyoto e é considerada Tesouro Nacional do Japão – principal comenda do governo para homenagear as pessoas de destaque no país.

Com tantos atrativos, são comuns casos de homens que extrapolam os limites na ocha-yas. Mas nem quando eles se sentem poderosos a ponto de achar que podem se engraçar mais intimamente com as gueixas, elas ousam ser rudes. Hábeis, impõem seus limites sem ser desagradáveis. E, ao menor sinal de saia justa, não hesitam em exibir atributos extras, dançando trechos de um balé fantástico e compenetrado. A recompensa vem quando elas sentem os clientes hipnotizados pelos movimentos delicados, mas regidos por um intimidador olhar vazio, como se tudo mais fosse apenas peça decorativa no ritmo inebriante de seu espetáculo.

Algumas casa de chá, como a Hori Yae, em Kyoto, mantém suas próprias gueixas. Outras solicitam os serviços das geikos de um oki-ya. É para lugares com esse que adolescentes se dirigem quando decidem trocar os lares para realizar um sonho de se tornar gueixas. O processo de admissão de novas garotas funcionam por apresentação. Semanalmente, Michiyo Oishi, dona da ocha-ya Hori Yae, em Kyoto, recebe currículos de candidatas indicadas por amigos e clientes. Elas são avaliadas, principalmente, pela beleza, e charme. “Tem de ser bonita e não pode ser gorda”, revela Oishi.

Caso seja aceita na comunidade gueixa, a aprendiz (chamada de maiko) terá de “trocar de família’. A okasan (dona da casa de gueixa) será sua nova mãe e as outras gueixas sua irmãs. Uma geiko será sua irmã de modo especial. Chamada de “irmã mais velha”, ela é a principal responsável pela formação da nova gueixa, num processo baseado na observação. O ensinamento não é gratuito. A maiko passará a acompanhar a irmã mais velha diariamente, funcionando como sua auxiliar no dia-a-dia. Fase que dura cerca de um ano, o último antes de ela se tornar gueixa. Antes de ser entregue a tutela da irmã mais velha, porém, a aprendiz passa de 3 a 5 anos recebendo lições de “etiqueta gueixa” de sua okasan. Mas a “mamãe” não é boazinha 24 horas por dia. As maikos são treinadas com rigidez e recebem uma boa carga de afazeres domésticos dentro do oki-ya. Já houve o caso de uma iniciante que abandonou o aprendizado e processou o oki-ya por exploração no trabalho. “É um mundo ultra-rigoroso”, admite a geiko Kimisome.

Em nome da profissão, as gueixas abdicam até de seus nomes. Quando passam a integrar oficialmente o oki-ya, elas ganham apelidos. O sobrenome? Gueixa, que em japonês significa pessoa que vive da arte. Namorados entram na lista de concessões feitas pelo oki-ya à gueixa. Ou seja, ela tem o direito de namorar, mas desde que isso seja feito em suas poucas horas de folgas. O “eleito” também não pode pode ser estar incluído em sua lista de clientes e é proibido de pisar no oki-ya, onde a gueixa também jamais poderá atender a um telefonema sequer seu. Casar com o heróico pretendente também está fora de cogitação, sob pena de a gueixa Ter de enterrar definitivamente sua carreira.

Gueixas não podem se casar, mas podem ter filhos, que serão muito bem recebidos e criados dentro da comunidade. Se o bebê de uma gueixa for do sexo feminino, ótimo, é candidata em potencial a ser uma geiko no futuro. Caso seja homem, estará fadado a ser um papel secundário dentro do oki-ya, com motorista, por exemplo. Afinal, estamos falando de uma família na qual as mulheres dão as cartas.

 

 

A maiko Fukuyuki (à esquerda), 18 anos, diz que os pais ainda não entendem sua decisão de ser gueixa e Kimisome (à direita), 21 anos, brigou com a família quando decidiu se mudar para oki-ya e hoje os contatos se resumem ao estritamente necessário

 

O rigor não restrito apenas a educação. A programação de atividades é igualmente limitada. As maikos tem uma agenda tão cheia que sobram apenas dois dias de folga por mês. E muitas nem podem dispor desse dias para voltar para casa e descansar no colo da verdadeira mamãe, já que a decisão de ser gueixa, em geral, é acompanhada de um rompimento com a família. Ageiko Kimisome brigou com os pais quando decidiu se mudar para oki-ya e hoje só conversa com eles o estritamente necessário . A maiko Fukuyuki também teve problemas em casa. Meus pais ficaram surpresos e desaprovaram minha idéia de ser gueixa”, conta . “Eles esperavam que eu tivesse uma vida comum, mas compreendem melhor minha decisão”.

 

 

Hoje em dia não é mais preciso ser virgem

 

A vida comum para Fukuyuki se resume às folgas semanais. Nesses dias, ela troca o quimono de seda por jeans e camiseta e deixa extravasar seu lado adolescente, tão reprimido no mundo gueixa. “Me visto de modo tão normal que até mesmo as pessoas do oki-ya não me reconhecem”, diverte-se. Ela usa o tempo livre como qualquer garota da sua idade. Adora fazer compras e ir ao parque de diversões. “Minhas folgas são valiosas, tenho horas contadas. O fato de ir a uma lanchonete é uma aventura, porque é uma coisa que dificilmente faço”, contenta-se. “É uma emoção diferente que não posso renunciar’.

Se ir ao McDonald’s fosse a única renúncia no cotidiano de Fukuyuki, a vida de gueixa não seria tão difícil. Além de ter de renunciar ao convívio familiar, se quiser continuar queixa até o final de sua vida ela ela deverá riscar a palavra casamento de seu vocabúlario. Mas isso não impede que o coração de uma garota de 18 anos balance de vez em quando. “Atendo grupos com homens jovens, alguns atraentes, mas não há chance de acontecer nada, pois a fiscalização da okasan e das irmãs durante as festa é muito intensa”, revela. E se ela gostar de algum desse belos jovens? “O sentimento é livre, mas não pode ser concretizado com se estivéssemos no mundo exterior”, resigna-se Fukuyuki, que ainda não se decidiu até quando permanecerá com gueixa. “Acho que se encontrar alguém ideal abandono a carreira”.

 

 Paixões fulminantes, aliás, estão entre os grandes tremores das proprietárias das casas de gueixas. O que faz sentido quando se lembra que as “mamães” são, na realidade, gerentes de uma família que significa negócios. O investimento para se formar uma gueixa é muito alto. Por isso, só compensará se as meninas ficarem um bom tempo trabalhando e dando lucros para a casa. O que justifica a fiscalização, e o controle sobre cada passo das jovens maikos, ainda fascinadas com o primeiro quimono.

Outra exigência é que a futura gueixa tenha concluído o primeiro grau na escola. Até o início deste século, a principal obrigatoriedade era que fosse virgem. Diga-se de passagem, uma tarefa não tão difícil de ser cumprida, pois a época tradicional para se começar o treinamento era quando a garota completava seis anos, seis meses e seis dias de idade.

 A numerologia é até interessante, mas o sistema não. Além de não terem idade para decidir seu rumo por si própria, as crianças eram muitas vezes vendidas pelos pais aos oki-yas. Era uma maneira de tentar sobreviver aos difícies períodos das Primeira e Segunda Guerra Mundiais. Outra atrocidade do passado era que a primeira experiência sexual para um cliente especial ao preço médio de dez mil dólares. “Isso não existe mais”, esclarece Michiyo Oishi. “Não me importo se as garotas são virgens ou não, para falar a verdade, nem pergunto”.

 

O preço da fama

Doze quimonos informais, ao preço de um milhão de ienes (cerca de 8,7 mil dólares) cada fazem parte do guarda-roupa de uma gueixa. Além disso, ela precisa de dois modelos formais, valor incalculável. A roupa é um dos artifícios para manter as gueixa atreladas aos oki-yas.

Aulas de música e dança estão entre as principais obrigações de uma aprendiz de gueixa. Treinos estafantes que seguem pela vida toda. Os “mestres” avisam que há sempre algo a aprimorar na arte das geikos 

Dificilmente elas conseguem comprar seu próprio “enxoval”

 

Quase uma gueixa
No último feriado de Ano-Novo, nove jovens japonesas causaram furor ao desfilar nas proximidades do templo de Asakusa, um dos principais pontos turísticos de Tokyo.

Enfiadas em elegantes quimonos de seda e com os rostos maquiados de branco, elas confundiram a multidão, que julgava estar diante de gueixas de verdade. Era quase isso. O furisode (que também significa quimono de manga comprida) é grupo de “gueixas modernas” que surgiu há cinco anos. São garotas treinadas para entreter clientes de restaurantes e lojas da região. Elas não tocam instrumentos e nem cantam a kouta, tradicionalmente música das gueixas, mas se saem bem ao executar a dança japonesa ao som de fitas gravadas.

 

 A maiko Satohina, 18 anos: duro aprendizado antes ser promovida à gueixa

O grupo, criado pela Corporação de Furisode de Asakusa, emprega garotas de 18 a 25 anos, preparadas durante três meses antes de estrear com gueixas modernas. Elas recebem lições de etiqueta, dança e aprendem a vestir-se com o quimono e a pintar-se com shironuri, a maquiagem branca das gueixas. As furisode já viraram atração em Asakusa, principalmente porque cobram muito menos por um show do que as gueixas com selo de autencidade. “É uma forma de agradar aos nosso clientes com uma atmosfera tradicional, valorizando a cultura japonesa”, diz Hideo Ida, diretor da Federação de Lojistas de Asakusa. O trabalho como furisode também atrai garotas porque é como um emprego normal, com duas folgas semanais, ao contrário das gueixas de verdade, que só param dois dias por mês e têm de morar no oki-ya. “Admiro as gueixas”, diz a furisode Rino Koga, 19 anos. “As vezes até brinco de imitá-las tentando tocar os instrumentos de percussão”.

Discrição é a essência dessa família de artistas das ocha-yas (casas de chá) que se espalharam pelos segredos que encerram. Portanto, é perda de tempo perguntar à maiko Fukuyuki, ou qualquer outra de suas “irmãs”, quais foram as pessoas famosas que já estiveram a seu lado durante as festas que costumam participar. No Japão, todo mundo sabe também que o papel de confidentes é encenado com freqüencia pelas gueixas – que ouvem coisas que até Deus duvida.

 Elas convivem com os homens mais poderosos do Japão

Que o diga o ex-primeiro-ministro japonês Uno Sosuke, que renunciou ao cargo em 1989. Um dos motivos que o levou a largar a política foi a revelação de que mantinha uma amante gueixa que, um belo dia, ameaçou contar a quem estivesse disposto a ouvir tudo o que sabia sobre ele. À época, foi um grande escandâlo. Não tanto pelo fato de um político ter se engraçado com uma gueixa – ato considerado “normal” e até digno de um certo status entre a ala masculina da sociedade nipônica. O rebuliço foi infinitamente maior no próprio meio das casas de gueixas, Afinal, uma delas havia quebrado um código de honra considerado sagrado ao deixar vazar a privacidade de seu patrocinador.

 A maquiagem é feita pelas próprias gueixas e maikos, num ritual diário que leva uma hora para ser concluído

O eufemismo “patrocinador” serve para designar um admirador de arte gueixa que resolve se aproximar de uma delas mais intimamente. Há vária formas de patrocinadores, classificados de acordo com o valor dos presentes e a quantidade de dinheiro que doam para a gueixa manter-se sempre bela e vestida com os quimonos mais caros da praça. Sim, porque apesar de as gueixa estarem muito distantes do conceito de prostitutas no Japão, podem se dar ao luxo de alimentar um tórrido romance com um patrocinador de sua escolha – que, a partir desse momento, passa a ser chamado de danna. Só que ele terá de pagar caro por isso, tanto para a geiko como para o oki-ya ao qual ela pertence. 

“Meu sonho é que me apaixone por um cliente muito rico, que possa patrocinar minha vida de geiko”, diz gueixa Kimisome, 21, há seis anos morando em Kyoto.

  No começo do século havia 80 mil gueixas. Hoje não passam de mil.

Caso venha a acontecer, Kimisome poderá até ter filhos de seu danna, que ficará livre de qualquer responsabilidade de pai, a não ser a de garantir o sustento da criança.

 

 

Vida dura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O visual irretocável das gueixas é uma de suas marcas registradas. Varia de acordo com o estágio do aprendizado. Assim, as maikos são obrigadas a cultivar uma vasta cabeleira até se transformarem gueixas. A partir dessa etapa, a garota tem passe livre para aparar os fios e começar a usar uma peruca requintadíssima, feita com cabelos de verdade, que pode atingir a casa dos 300 mil ienes (cerca d 2,6 mil dólares).

 Outra diferença fica por conta dos ornamentos. Enquanto é permitido à maiko abusar de cores e firulas, as gueixas têm de manter a pose com adereços discretos, que lhe conferem um ar mais adulto. Tanto aprendizes quanto veteranas, no entanto, dispensam o mesmo cuidado para preservar o penteado por até uma semana. Feito conseguido às custas de muita parafina e de um travesseiro de madeira com uma almofadinha, o taka makura. A maquiagem (shironuri) é um capítulo à parte.

Elaborada pelas próprias gueixas e maikos, é feita com uma tintura branca, escolhida no passado como um artifício das japonesas para se igualar à tez branquíssima das madames européias do século XVII. A pintura do rosto, pescoço e parte do tórax é um ritual diário que consome uma hora do tempo das meninas todos os dias. O charme garantido pela parte deixada à mostra do pescoço para provocar os clientes – região considerada de extrema sensualidade pelos homens japoneses. Depois de toda essa preparação, a gueixa ainda tem de agradar a ajuda de um “vestidor”, já que é preciso força e técnica para amarrar o obi, cinturão que enfeita e prende o quimono no corpo. Só após essa etapa as meninas estão prontas para deixar o oki-ya em direção à casa de chá e enfrentar mais uma noite de batente.

 

 Um trecho do pescoço é deixado propositalmente à mostra da maquiagem. Um truque que garante que efeito de sensualidade máxima aos olhos nipônicos.

A pesar de se orgulhar de manter uma tradição secular, o mundo gueixa não é totalmente arredio à modernidade. A gueixa Koito, de Miyagawacho, em Kyoto, abriu uma página na Internet para mostrar um pouco de sua arte. ‘A intenção é revitalizar o distrito e ajudar possíveis clientes”, explica Koito. Outro avanço é enviar gueixas para animar festas fora das casas de chá. Algumas empresas contratam as moças para lançar produtos em feiras de negócios.” Já participamos até da inauguração de uma loja de departamentos em Cingapura”, conta Michiyo Oishi, da ocha-ya Hori Yae, em Kyoto. “É a globalização talvez, né?”, brinca.

Pode parecer brincadeira, mas a globalização pode ser a saída para a sobreviência das gueixas. Apesar de tradicional, o universo que habitam sempre foi contestado na sociedade japonesa, principalmente pelas esposas dos clientes das casas de chá. No Japão moderno, com a gradativa liberação da mulher, a oposição ganhou força que o número de gueixas não chega a mil atualmente, num processo de franca extinção se comparando às 80 mil gueixas na ativa no início do século.

A sociedade nipônica hoje é bem diferente do século XVII, quando as mulheres eram mais submissas aos anseios masculinos e pouco se importavam com o avanço das gueixas. O Japão chega ao terceiro milênio tendo enviado uma astronauta ao espaço (Chiaki Mukai) e bancando uma mulher de 38 anos (Seiko Noda) como ministra dos Correios e Telecomunicações. É mais do que justificável, porém, que as esposas nipônicas sintam-se mais confortáveis ao manifestar seu repúdio a idéia de ver seus maridos gastando fortunas divertindo-se ao lado de gueixas. “O cenário histórico cultural mudou”, afirma a gueixa Tade Koyokazu, 78, que há 35 anos ensina kouta (instrumento tradicional japonês) para geikos em Kyoto. “A educação no Japão não é mais tão rigorosa e há mais opções de trabalho para a mulher”, acrescenta, dando motivos extras para as jovens japonesas pensarem duas vezes antes de encarar a rígida escola das gueixas.

Uma das opções de trabalho que vem contribuindo para o declínio do número de gueixas são as hostess, recepcionistas que trabalham em bares japoneses conhecidos por sunakku (do inglês snack bar). São jovens garotas bonitinhas pagas para entreter clientes homens com conversa fiada, sem qualquer relacionamento mais íntimo, pelo menos dentro do bar ou às vistas dos seus donos. O número de hostess e sunakkus vem crescendo a cada anao e faz frente ao trabalho das gueixas, principalmente porque o serviço é muito mais barato e permite o acesso da classe média masculina do Japão. Para se ter uma idéia do páreo duro que as gueixas têm pela frente, ir a bares de hostess foi a sexta atividade de lazer mais procurada pelos homens japoneses em 1997.

A maiko Fukuyuki defende-se da concorrência e só vê bons motivos para os japoneses apreciarem as gueixas. “As pessoas precisam entender que a arte gueixa é um hobby nobre”, argumenta. “Tem homem que gosta de tênis e golfe, outros preferem o entretenimento nas casas de chá”. Ela garante que se fosse uma mulher comum, casada, não se importaria se seu marido freqüentasse festas de gueixas. “Só iria impor uma condição: que ele não se apaixonasse por nenhuma delas”.

Fukuyuki garante que nem todas as esposas sentem ciúmes da atenção que as gueixas dispensam aos seus maridos. Ela conta casos de clientes que fazem questão de apresentar às esposas o ambiente da casa de chá. “Muitas delas já pediram para tirar foto comigo e disseram que gostariam de ser gueixas”, revela Fukuyuki.

Certas ou erradas, as gueixas parecem não se importar com o fato de fazer companhia a homens casados. Mesmo porque elas realmente acreditam que não são apenas “a outra” quando a relação com o cliente acaba em um tórrido romance. “No nosso universo não somos amantes. E como não conheço outro mundo, aqui somos esposas, podemos ter filhos deles se quisermos”, explica a gueixa Kimisome. O outro mundo, que Kimisome afirma desconhecer, costumar olhar para as gueixas de soslaio, num misto de admiração e reprovação. Principalmente o Ocidente, que teima em classificá-las como prostitutas de luxo.

 

Os homens japoneses, ao contrário, sabem dar a elas o seu devido valor, enxergando-as quase como divindades vivas. Ou apenas como o ideal da mulher perfeita: bela, servil e sempre disposta a agradá-los. Alheias a isso, as gueixas, anônimas, camufladas pela maquiagem branca e enfiadas em seus ricos quimonos perseguem o sonho de preservar sua arte e uma das mais belas peculiaridades das mulheres, a feminilidade.

Escolas de artes
Antes de desfrutar as delícias da carreira, as gueixas passam por um árduo treinamento. São horas de estudos diários que incluem aulas de dança, música canto da tradicional música gueixa, a kouta. Elas recebem as lições nas escolas de cada distrito. As mais tradicionais ficam em Kyoto, o berço da arte. Tade Koyokazu, uma gueixa de 78 anos que há 35 ensina kouta às geikos de Miyagawacho, afirma que nessa profissão não existe aposentadoria. Até hoje ela ensina às aulas como os versos da kouta devem se encaixar às notas do shamisen, a guitarra rústica que as gueixas tocam nas festas. Apesar de manter viva a tradição, Tade revela que o ensino está mais relaxado e não há tanto espaço para a filosofia do passado. “As garotas de hoje não têm a garra das maikos de antigamente”, diz. Se for rigorosa, elas desistem”.